terça-feira, 3 de agosto de 2010

THE RAVEN


O CORVO *


Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.


É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,


Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.


É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.


Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.

Isso só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.


"É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,


Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."


Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,


Com o nome "Nunca mais".
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".


Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais


Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,


Com aquele "Nunca mais".
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,


Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"


Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!


Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"


Disse o corvo, "Nunca mais".
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"


Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,


Libertar-se-á... nunca mais!

( Edgar Allan Poe - tradução Fernando Pessoa)

VIVER É ARRISCAR-SE

VIVER É ARRISCAR-SE

Rir é arriscar-se a parecer doido...
Chorar é arriscar-se a parecer sentimental...
Estender a mão é arriscar-se a se comprometer...
Mostrar os seus sentimentos é arriscar-se a se expor...
Dar a conhecer as suas idéias, os seus sonhos, é arriscar-se a ser rejeitado...
Amar é arriscar-se a não ser retribuído no amor...
Viver é arriscar-se a morrer...
Esperar é arriscar-se a se desesperar...
Tentar é arriscar-se a falhar...
Mas devemos nos arriscar!
O maior perigo na vida está em não arriscar.
Aquele que não arrisca nada...
Não faz nada...
Não tem nada...
Não é nada...


RUDYARD KIPLING

SE

SE

Se és capaz de manter a tua calma quando
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa;
De crer em ti, quando estão todos duvidando
E para estes no entanto, achar uma desculpa;
Se és capaz de esperar, sem te desesperares
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais nem pretensioso


Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires;
De sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores;
Se, encontrando a derrota e o triunfo, conseguires
Tratar da mesma forma a estes dois impostores;
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste,
E, as coisas porque desta vida, estraçalhadas,
E refazê-las com bem pouco que te reste;


Se és capaz de arriscar numa única parada
Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
E perdes, e ao perder, sem nunca dizer nada,
Resignado tornar ao ponto de partida;
De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
A dar, seja o que for, que neles ainda existe
E a persistir assim quando exausto, contudo,
Resta a vontade em ti, que ainda ordena: persiste!


Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
E, entre reis, não perder a naturalidade;
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes;
Se a todos podes, ser de alguma utilidade,
E se és capaz de dar, segundo por segundo
Ao minuto fatal todo valor e brilho;
Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
E - o que é muito mais - és um homem, meu filho!

(RUDYARD KIPLING - tradução de Guilherme de Almeida)

NÃO ME FECHEM AS PORTAS

NÃO ME FECHEM AS PORTAS

Não me fechem as portas, orgulhosas
bibliotecas, pois justamente o que estava faltando
em suas prateleiras apinhadas,
é o que venho trazer
- mal acabando de sair da guerra,
um livro que escrevi:
pelas palavras do meu livro, nada;
pelas intenções, tudo!
Um livro à margem,
sem nada a ver com os restantes,
e que não pode ser sentido só
com o intelecto.
Vocês, porém, com seus silêncios latentes,
a cada página hão de estremecer
maravilhadas.
Isto é o toque de milhares de cornetas, o choro das flautas
e o bater dos ferrinhos.
Eu não toco uma marcha só para os vitoriosos... toco grandes
marchas para os conquistados e derrotados.
Já ouviram dizer, foi bom ter ganho o dia?
Também digo, é bom perder... perdem-se batalhas
com o mesmo espírito com que se ganham.
Ouço tambores triunfantes, aos mortos... Abandono-me à
música alegre que se toca em sua honra,
Vivas, em honra dos que falharam, e àqueles cujos vasos de guerra
cairam nos mares, e aos que se afundaram eles próprios,
E a todos os generais que perderam combates, e a todos os
heróis vindouros, e ao sem número de heróis iguais
aos grandes heróis conhecidos.

(WALT WHITMAN - tradução livre de José Félix)

DAS CANÇÕES DA EXPERIÊNCIA

DAS CANÇÕES DA EXPERIÊNCIA

O preço da experiência
Qual é o preço da experiência? Os homens a adquirem com uma canção?
Ganham sabedoria dançando nas ruas? Não, ela é comprada pelo preço
De tudo que um homem tem, sua moradia, sua esposa, seus filhos.
A sabedoria é vendida num mercado sombrio onde ninguém vem comprar,
E no campo infecundo que o fazendeiro lavra em vão por seu pão.
É fácil vencer sob o sol do verão
E na colheita cantar na carroça abarrotada de grãos.
É fácil dizer da cautela aos aflitos,
Falar das leis da prudência ao andarilho sem abrigo,
Ouvir o grito faminto do corvo na estação invernal,
Quando o sangue vermelho mistura-se ao vinho e ao tutano do cordeiro.
É tão fácil sorrir perante a ira da natureza,
Ouvir o uivo do cão ante a porta no inverno, e o boi mugindo no matadouro;
Ver um deus em cada brisa e uma bênção em cada tempestade.
Ouvir o som do amor no raio que arruína a casa do inimigo;
Regozijar-se diante da praga que toma o seu campo, e da doença que ceifa seus filhos,
Enquanto nossas oliveiras e nosso vinho cantam e riem na frente da porta,
e nossos filhos nos trazem frutas e flores.
Então o lamento e a dor estão quase esquecidos, assim como o escravo que roda o moinho,
E o escravo acorrentado, o pobre prisioneiro, e o soldado no campo de batalha,
Quando os ossos quebrados deixam-no gemendo à espera da morte feliz.
É fácil regozijar-se sob a tenda da prosperidade:
Eu poderia cantar e me regozijar dessa maneira: mas eu não sou assim.

WILLIAM BLAKE

DAS CANÇÕES DA INOCÊNCIA

DAS CANÇÕES DA INOCÊNCIA

Introdução

Tocando uma flauta no vale selvagem,
Tocando canções doces e alegres,
Vi uma criança aparecer nas nuvens,
E ela me disse sorrindo:
"Toque aquela do cordeiro";
Então toquei alegremente;
"Toque de novo a canção, por favor" -
Então eu toquei, e ela chorou ao ouvir.


"Largue a flauta, essa sua flauta feliz
E cante canções que tragam alegria;
Então toquei a mesma canção,
Enquanto ela chorou de prazer, ao ouvir.


"Flautista, sente-se e escreva
Num livro para que leiam" -
Então ela desapareceu".
E eu peguei um junco oco,


E fiz uma caneta rústica,
E a mergulhei nas águas límpidas
Para escrever as felizes canções
Que toda criança aprecia tanto ouvir

WILLIAM BLAKE

A MOSCA

A MOSCA

Minimosca
Teu giro de verão
Minha mão à toa
Desmanchou.


Não sou eu
Mosca também?
Ou não és,
Como eu, ninguém?


Pois eu danço
E bebo e canto
Até que brusca mão
Me espanta.


Se pensamento
É ar no peito
E se é morte
Perdê-lo,


Então sou
Mosca feliz
Se eu vivo
Ou se vou


(WILLIAM BLAKE - Tradução de Regina de Barros Carvalho)